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Sem dinheiro argentinos oficializam o comércio por meio de trocas nas feiras livres

BUENOS AIRES, ARGETINA – Numa manhã cinzenta de sábado, comerciantes e moradores de Morón, na província de Buenos Aires, vão chegando à praça cedo, para ocupar os melhores lugares o mais cedo possível.


Nahuel, 32, já chega com a cara amarrada e amassada de quem dormiu pouco. “Trabalho como motorista de aplicativo até tarde da noite. Está frio, não consigo estar na feira na hora que começam a armá-la”, diz ele.


Confiando que seu produto é bom, vai se instalar num canto mais discreto. “Tem uma molecada que vem só para ver se sai daqui com um bom tênis em um bom negócio”, afirma, sorrindo.
Na primeira fila das vendedoras estão as irmãs Chayanne e Laurimar, 43, venezuelanas.
Elas trazem roupas de distintos tipos que dividem, apesar do pouco espaço que têm, em seções, como se fosse uma pequena loja de departamentos. Há o cabideiro das camisas masculinas, o das femininas, enquanto camisas e pijamas são estendidos sobre uma manda no chão. Em dois caixotes grandes, há roupa íntima.


“Durante a semana, vendemos na nossa loja mesmo. No fim de semana, trazemos mercadoria para cá porque é mais fácil circular, porque aqui não trabalhamos só com dinheiro, mas também com escambo”, dizem.
Os primos Julio e Hugo chegam com seus enormes colchões e os posicionam mais no meio da feira. Os produtos estão embalados, “mas pode experimentar”, oferecem. Também trazem roupa de cama e cobertores.


Nos três casos, os produtos são de primeira mão, comprados em mercados por atacado, como em La Salada ou no Once. Vender fora do espaço comercial permite fugir de algumas taxas e impostos e oferecer o produto mais barato. E também trocá-lo.
O escambo praticamente se institucionalizou na Argentina após a crise de 2001, quando grande parte dos argentinos teve seu dinheiro sequestrado pela política do “corralito” (megaconfisco bancário imposto pelo governo). Dezenas de tipos de papel-moeda surgiram para substituir as notas de pesos, entre eles, os “patacones”. E o fenômeno se estendeu por meses.


“O escambo de hoje em dia é outra coisa. Primeiro é de muito menor em escala. Ele atende à população que até recuperou seu emprego de antes da pandemia, mas já não consegue fazer com que seu salário renda o mesmo que antes por causa da desvalorização da moeda. Atende também aos informais, que cresceram em número [hoje ao redor de 44% do mercado de trabalho] , mas cujo poder de compra tampouco subiu”, diz à Folha de S.Paulo o economista Hernán Lechter.
No mercado de Morón, o escambo se dá mais por preços combinados e negociados a viva-voz, com os vendedores comparando pranchetas com valores de suas coisas.
Um tênis por seis camisas parece justo? Adiante. Se não parece, se negocia. No dia em que a reportagem visitou o local, Julio e Hugo conseguiram trocar um bom colchão por uma TV nova. “É para seguir a Copa do Mundo”, sorriram.
Há outras feiras de escambo, como a que se arma sazonalmente na praça de Maio, em que funciona um papel-moeda simbólico, impresso pelos organizadores do mercado, e leva os dizeres “volvió el trueque” (voltou o escambo).
Lá, roupa e alimentação são os mais disputados produtos. Alguns levam vestimentas de segunda mão, em busca de trocar por algo de comer para levar para casa.
As feiras da praça de Maio são organizadas pela Frente de Organizações em Luta (FOL), uma organização social que também promove protestos contra as políticas econômicas do governo. “Trabalhadores informais e com carteira assinada estão sem reajustes; como se supõe que possa haver atividade comercial assim?”, pergunta o FOL num comunicado entregue ao governo.
Em outras áreas da região metropolitana de Buenos Aires, as feiras de “escambo” estão muito mais presentes do que na capital, e são organizadas pelos próprios moradores, como a da Villa Fiorito, que ocorre todas às segundas e sábados à tarde.
Aí se intercambiam basicamente roupas de segunda mão, calçados, brinquedos, utensílios de cozinha e alimentos. Quase não se vê dinheiro. Tabelas escritas à mão são comparadas, se negocia, e cada um sai com seu produto alguns minutos depois, se há acordo.
Com a inflação chegando a 100% ao ano em dezembro, muitas famílias não têm conseguido fazer o dinheiro chegar ao fim do mês. Segundo o último relatório sobre pobreza do Indec (IBGE argentino), 36,5% dos argentinos está abaixo da linha de pobreza.
“A gente traz coisas aqui, algumas novas, algumas mercadorias que familiares iam vender em outra parte, em troca de alimentos e até de remédios”, diz Lucy, 62, que se lembra da crise de 2001. “Ficamos vários meses sem ver dinheiro”, relata. Segundo dados do governo, no ano de 2002, os mercados de trocas chegaram a envolver mais de 7 milhões de argentinos (cerca de um quinto da população do país na época).
Com a nova escalada da inflação, o ministro Sergio Massa anunciou um novo sistema de proteção de preços além da já existente lista de preços congelados, os “preços cuidados”.
A nova medida cria os “preços justos”, onde se promete que o impacto da inflação será menor.

Fonte: Folha de São Paulo

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