Especialistas criticam mudanças nas grades curriculares provocadas pelo Novo Ensino Médio

Rio – Com a volta das aulas das escolas da rede estadual de ensino nesta segunda-feira (5), mudanças nas grades curriculares do Novo Ensino Médio, principalmente a retirada de matérias tradicionais como História, Geografia, Química, Física e Biologia, voltaram a serem debatidas no ambiente escolar. Tais disciplinas dão lugar a matérias como “O que rola por aí?, “Ação! Está em suas mãos”, “De olho na rede digital”, “Relicário de heranças”, “Quem és tu, cidadão?”, entre outras. De acordo com especialistas ouvidos por O DIA, as mudanças influenciam no senso crítico e na formação acadêmica dos estudantes.

O novo modelo de Ensino Médio foi aprovado em 2017 durante o governo Michel Temer (MDB) e começou a ser implementado em 2022. A proposta fez com que parte das aulas fosse comum a todos os estudantes do país, direcionada pela BNCC, atingindo as escolas no Estado do Rio. Na outra parte, os próprios alunos podem escolher um itinerário para aprofundar o aprendizado nas áreas de linguagens, matemática, ciências da natureza, ciências humanas ou ao ensino técnico. A oferta de itinerários, no entanto, depende da capacidade das redes de ensino e das escolas.

Zuleide Silveira, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), contou que o Novo Ensino Médio contribui para conter a entrada de jovens no Ensino Superior devido a falta de matérias que levam o conhecimento histórico produzido pela sociedade, além de impactar a formação crítica dos estudantes.

“É um tema candente na sociedade brasileira, cuja discussão deve ser ampliada ao máximo possível. Essa reforma veio negar a transmissão do conhecimento produzido historicamente pela humanidade e ao mesmo tempo nega a formação crítica. Trata-se de um novo conteúdo que veio institucionalizar saberes interessados ao mercado, não ao mundo do trabalho propriamente dito, mas para formar o capital humano, cultural e social oficializando assim a lógica neoliberal no ensino público. Portanto, trata-se da contenção da entrada dos jovens no ensino superior, onde ocorre a formação profissional dos sujeitos, negando o conhecimento socialmente produzido historicamente pele a formação de uma consciência crítica dos sujeitos em sociedade para dar respostas a esses interesses imediatos do capital”, disse.

Silveira destacou que a mudança traz um prejuízo muito grande aos estudantes que realizarão o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e outros vestibulares, sejam eles da rede pública ou da privada, pois a lei do Novo Ensino Médio atinge todas as unidades. A professora ressaltou também que o problema impacta no trabalho dos professores.

“Surge a redução da jornada escolar, a preconização do trabalho docente, até porque esses professores são eles que vão dar esses temas inusitados. São temas novos para eles que na realidade vão acabar se tornando um arranjo. Eles não foram formados para isso. São temas distantes da realidade em que vivemos. São temas que fazem parte de um projeto que vai ser implantado. Esses problemas precisam ser resolvidos para a gente garantir uma política nacional de ensino médio que garanta a formação plena do sujeito para garantir o direito à formação”, completou.

Para Marcelo Guimarães, professor do departamento de Filosofia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), a reforma do Ensino Médio se revelou como prejudicial a alunos e professores, ainda mais na rede pública.

“Há perda de carga horária de disciplinas importantes para a formação básica e para a preparação para o Enem e vestibulares. No ano passado, escolas que acompanhamos no projeto Residência Pedagógica tinham disciplinas como as citadas, sem ementa bem definida, distribuída um tanto aleatoriamente entre professores e sem nota para os alunos, o que fez com que estes nem as considerassem como disciplinas importantes e muitas vezes nem fossem às aulas. O prejuízo para os professores se dá porque são obrigados a lecionar temas para os quais não foram preparados e temas mal definidos, sem lastro científico ou acadêmico. Os professores também tem sua carga horária fragmentada, o número de turmas multiplicado, são obrigados a dividir-se entre várias escolas, sem conseguir acompanhar adequadamente os estudantes”, opinou.

Segundo Guimarães, as novas disciplinas não tem conteúdo, lastro científico ou acadêmico, nem garantia de que ajudarão na formação de qualidade dos estudantes. O professor destacou que tais mudanças ainda contribuem para o aumento da desigualdade educacional no país.

“Os alunos são prejudicados porque perdem acesso aos conteúdos e habilidades que serão cobrados no Enem e que são importantes para a formação básica (que envolve o desenvolvimento integral da pessoa, a formação para a cidadania e a qualificação para o trabalho, segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional). Os estudantes das escolas públicas têm a sua formação reduzida e fragmentada, são impedidos de ter acesso à formação básica. Desse modo, enfrentam muito mais dificuldades para entrarem no ensino superior. A reforma do ensino médio aumenta muito a desigualdade educacional no Brasil. O caso do ‘Projeto de Vida’ no Estado do Rio é um dos piores – foi criada uma disciplina com esse nome para as três séries do ensino médio e retirou-se os tempos de Filosofia e Sociologia, entre outras. Ora, Projeto de Vida não é uma disciplina, poderia talvez ser um projeto que integrasse diferentes disciplinas, mas como está é mais um elemento de fragmentação dos currículos”, finalizou.

A professora Ana Rosa Luz, do Colégio de Aplicação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (CAp-Uerj), entende que o Novo Ensino Médio tem um caráter elitista e não popular desde o seu início. A proposta tem como objetivo a escolha de disciplinas por parte dos alunos, mas Luz chama atenção para escolas que não tem como ofertar o que o estudante deseja, contribuindo para uma desigualdade educacional comparando às escolas particulares.

“Quem vai entrar na universidade? Quem teve escolha, ou seja, os estudantes que estudaram em redes privadas, pois são elas que estão investindo em ofertar todas as disciplinas e itinerários formativos para que seus alunos de fato tenham escolha. Nós, da rede pública, não conseguimos dar conta do que a gente tem quiçá ofertar tudo que é exigido porque é uma falácia acreditar que são menos disciplinas que a reforma propõe. Na verdade, o quantitativo é quase o mesmo. A grande questão que o novo ensino médio impõe é: a educação está a serviço da democracia ou do lucro? Ele está ao lado das instituições privadas, da capitalização da educação ou dos educadores? O novo ensino médio carrega aspectos neoliberais, empresariais e conservador, que fragmentam e precarizam o currículo e o conhecimento, colocando o currículo como espaço de disputa porque ele é uma ferramenta de obstrução e controle das escolas, cujo único objetivo é a redução da educação aos objetivos empresariais sobre um viés ultraconservador através da militarização das escolas com formação de sujeitos acríticos e obedientes”, discursou.

Matérias com competências filosóficas, artísticas e de ciências humanas, são importantes para construção do desenvolvimento de uma sociabilidade democrática, de acordo com a professora. A exclusão dessas disciplinas contribui para a que a escola funcione como um “centro de adestramento”, segundo Luz.

“O novo ensino médio é um ataque ao outro. Ele só potencializa a ideia de escola como um centro de adestramento a partir da exclusão dessas disciplinas essenciais. Em consequência disso, há também uma frente de preconização do trabalho dos docentes já que, com as cargas horárias dos professores excluídas, são obrigados a assumir os conteúdos e os itinerários formativos resultando também no esvaziamento dos cursos de licenciatura de todo o país. Acredito que o Enem irá se adaptar a essas estruturas, mas acho que a grande resposta que teremos vai estar nas universidades públicas”, completou.

Críticas nas redes sociais

Uma aluna de uma escola estadual localizada em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, usou as suas redes sociais em janeiro para expor sua grade curricular. No documento, não consta matérias como História, Geografia, Química, Física e Biologia, que costumam cair no Enem. 

“Esse é o meu quadro de horários do 3º ano do Ensino Médio. Não tem história, geografia, física, química, e biologia. É essa a educação do Brasil, parabéns aos envolvidos. Sabe, não é ‘mimimi, aff não quer estudar’. Não, pelo contrário! Eu quero estudar em paz! Sério, eu sempre fui aluna nota 10, aluna dedicada e que nunca estudou por obrigação e sim por prazer, mas eu cansei. Não dá mais. Eu queria fazer qualquer coisa pra mudar isso. É desumano”, escreveu.

A grade foi criticada por diversos internautas, que não entenderam o que será abordado nas matérias com nomes considerados “inusitados”. Uma chegou a dizer sobre a função dos professores em ministrar uma dessas aulas.

Fonte: O Dia

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