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Os ‘coadjuvantes’ do tetra: do segurança que levou troféu da Copa para casa aos bastidores das resenhas e ‘cervejinhas’

Moises conta que chegou à Rua da Alfândega, no centro do Rio de Janeiro, dirigindo uma Parati. Era julho de 1994. Ele desceu do carro e entrou no prédio de número 70, na então sede da CBF, carregando uma caixa na cor vinho. Subiu ao oitavo andar, na sala da presidência, e entregou a taça da Copa do Mundo, conquistada dias antes, que havia guardado em sua própria casa.

Na mesma cidade, 30 anos depois, a parede de um consultório exibe fotos daquele título. Apenas os mais observadores percebem que o fisioterapeuta que atende ali, Claudionor, está naquelas imagens. Ele, assim como os 22 jogadores comandados por Carlos Alberto Parreira nos Estados Unidos, é um campeão do mundo.

Quando a bola do pênalti cobrado pelo italiano Roberto Baggio passou por cima do gol defendido por Taffarel, há exatamente três décadas, o segurança Moises Campos de Lima, o fisioterapeuta Claudionor Delgado, os roupeiros Rogelson Barreto e Antônio Assis, os massagistas Nocaute Jack e Luizão da Silva e tantos outros profissionais que atuaram nos bastidores da seleção brasileira se tornaram tetracampeões.

ESPN ouviu histórias, curiosidades e lembranças de pessoas que pouco aparecem para o público, mas que podem dizer, com orgulho, que foram parte fundamental daquele grupo que colocou a quarta estrela na camisa amarela.

A taça da Copa do Mundo guardada em casa

Na delegação brasileira da Copa de 1994, “ninguém fazia nada que não fosse levado ao conhecimento do segurança Moises”. É o que o próprio garante, falando de si em terceira pessoa, orgulhoso do trabalho que realizou.

“Eu, sozinho, tive uma pressão muito grande. Foi uma seleção que saiu do Brasil desacreditada”, relembra. O trabalho era árduo. Ele era responsável por vistoriar o gramado para garantir que nenhum espião adversário havia instalado qualquer tipo de escuta, pensar nos trajetos de ônibus, isolar possíveis intrusos do treinamento e controlar quem poderia entrar ou sair da concentração no hotel Villa Felice, em Los Gatos, que foi a casa brasileira naquela campanha.

“Falei para o presidente [da CBF, Ricardo Teixeira] que até ele tinha de estar na lista da delegação. Quem não estava, não entrava. Não tinha familiar, amigo, pagodeiro. Na Copa, o erro tinha de ser zero. Para dormir era difícil. Eu dormia por duas ou três horas”, conta.

A comissão técnica e os próprios jogadores entendiam que, para manter o foco na competição, era preciso praticamente se isolar do mundo. Além da proibição de circulação de pessoas de fora da delegação na concentração, não era permitida nem mesmo a entrada de jornais ou revistas que pudessem afetar o grupo. Havia, no entanto, uma forma de matar a saudade dos familiares – e Moises conta ter sido fundamental para isso.

“Em um espaço distante da concentração, colocamos um espaço para receber as famílias que estavam nos Estados Unidos. Após as atividades, eu atendia parentes, esposas, filhos. Colocava suco, biscoito, frutas. Trazia o atleta da concentração para que pudesse ter contato por um determinado momento. Quando acabava o horário, a família ia embora e o jogador voltava”, revela.

Essas atitudes e o jeito de “servir tudo e todos dentro das regras”, ele diz, fizeram com que o segurança ganhasse a confiança dos atletas. As funções se tornaram quase diplomáticas, a ponto de resolver qualquer tipo de problema.

“Para tudo que os jogadores precisavam, queriam e pediam, eu estava ali e atendia. Eles não procuravam um membro da comissão técnica, procuravam um segurança. O segurança passou a ser para eles o ponto máximo de confiança em todo o trabalho”, afirma Moises.

A confiança da delegação era tão grande que o segurança, depois do título, virou uma espécie de guardião da taça.

“Quando voltamos ao Brasil, recebi uma ordem do presidente da CBF: ‘Guarde a taça’. Não tinha como colocar no cofre do banco naquele momento, nada disso foi providenciado antes. Eu coloquei a taça dentro da caixa vinho e levei para a minha casa. Ficou por quatro dias ali. Foram dias tensos. Era a taça da Copa do Mundo. Olhava a todo minuto para ela, até quando queria dormir”, relembra.

“Imagine sofrer um assalto, roubarem, invadirem a casa. Imagine a tensão que fiquei até entregar a taça na sala da presidência. Imagine circular com a taça na Avenida Brasil naquela época. Nem parente pode saber dessas coisas. Fui entregar de carro mesmo. A caixa foi aberta apenas na sede da CBF. Depois a entidade recebeu uma réplica e a original ficou com a Fifa”, completa.

Relação de confiança

É comum que profissionais dos bastidores do futebol criem relações de confiança com os jogadores. Os roupeiros, por exemplo, além de arrumarem todo o material antes de jogos e treinamentos, são muitas vezes designados para calçar as chuteiras dos atletas no dia a dia, a fim de amaciá-las para que não fiquem incômodas durante as partidas.

Em 1994, a rouparia contava com dois profissionais descritos pelos colegas como excelentes. Rogelson Barreto, que esteve presente em seis Copas do Mundo, costumava ouvir de Romário, antes de cada jogo, uma previsão. “Pode gastar, hoje o bicho é certo”. Após as partidas, o papo se repetia. “Aí, peixe, não te falei?”, brincava o camisa 11, citando a premiação em dinheiro paga por cada vitória. Barretinho, como era chamado carinhosamente, morreu em 2020.

Antônio Assis deixou a CBF após a Copa de 2014, duas décadas depois do tetra, e não voltou a trabalhar com futebol. Ele é avesso a entrevistas. Em rápido contato com a reportagem da ESPN, se limitou a dizer que “se até jogadores são esquecidos, imagine eu”. O massagista Nocaute Jack morreu em 2003. O outro massagista, Luizão, completou 80 anos em maio e trabalha atualmente no America-RJ, que tem Romário como presidente.

Em torneios assim, todos membros da comissão técnica são essenciais para o que Luiz Carlos Prima, que era um dos preparadores físicos em 94, chama de “catequese”. Há uma troca de confidências.

“Estamos sempre preparados para ouvir e falar quando solicitado. Era isso que eu fazia na seleção. Eu não queria aparecer”, diz. “Fui uma peça do quebra-cabeça. Se tirasse o Prima de lá, faltaria essa peça. Cada um tinha sua função fora do campo. Cada um era uma peça. Era o ombro amigo de um jogador que estava triste porque tinha acontecido algo com a família no Brasil. A gente tinha um argumento, uma palavra de consolo, uma conversa amiga. Eu me sinto uma peça superimportante”, completa.

“Tínhamos de dar conselhos, conversar em particular, motivar os jogadores. Fazíamos isso no dia a dia. Como eu era muito ativo, fazia muito esse trabalho. Tinha esse trabalho ‘social’. Com o jogador que está jogando, tudo bem, mas quem não está como titular fica chateado, quer jogar. Então você tem que trabalhar esse jogador, tem que deixar ele pronto”, afirma.

E quando o jogador não precisa de conselho?

Romário é considerado o cara do tetra. O Baixinho, apesar da fama de não gostar de treinar, mostrou dedicação aos companheiros de 1994. Mas, em cada história, a “marra” característica do camisa 11 não é escondida.

“Por mais que você dê conselho para ele, tente orientar, ele é uma pessoa iluminada. Quando ele vinha para uma competição, amistoso, eliminatórias, ele vinha para resolver. Esse é o espírito do campeão. O campeão não espera alguém fazer por ele, ele faz. Faz a diferença no grupo. E o grupo sabia disso”, conta Prima.

“Em algumas preleções, o Zagallo e o Parreira conversavam com o Romário. Falavam para ele e para o Bebeto: ‘Vocês não precisam marcar ninguém. Podem ir até o meio do campo’. Aí o Dunga completava: ‘Deixa eles soltos, eu preciso deles com a perna leve para correrem e fazerem o gol’. Isso aconteceu na Copa”, revela.

O outro preparador físico da delegação, Moraci Sant’Anna, passou por um momento mais tenso com Romário. Antes da viagem aos Estados Unidos, a seleção brasileira fez um período de treinos na Granja Comary. O Baixinho, que estava se preparando para disputar a final da Champions League com o Barcelona, chegou já no fim, a poucos dias do embarque.

“Na véspera do último treino, o Moises falou que o Romário tinha chegado e estava jantando. Fui lá falar com ele. Todos os jogadores tinham feito uma avaliação física na Escola Aeronáutica do Rio de Janeiro. Meu planejamento todo estava baseado nessa avaliação. Como nunca tinha trabalhado com ele, precisava desses dados. Sentei ao lado e perguntei: ‘E aí, como você está?'”, conta Moraci.

A resposta não foi a esperada. “Ele me falou: ‘Pô, estou cansado para caramba, não dormi, tomamos uma cacetada do Milan (4 a 0). Fomos de madrugada para Barcelona para não ter problema com os torcedores, depois vim para o Brasil sem conseguir dormir no avião. Cansado’. Eu disse que ele poderia descansar, um treino a mais não faria diferença, mas ele teria dois dias para fazer a avaliação”.

“Ele disse: ‘Ah, professor, pode contar que eu estou zero’. Eu respondi que qual era o zero dele. Não sabia como ele reagia aos treinamentos, precisava ter algo para me basear. Ele tinha perdido 15 dias de treinos. Eu precisava acertar na mosca. Ele repetiu que estava zero. Saí de lá pensando que ele não faria a avaliação”.

Dois dias depois, à noite, já no aeroporto do Galeão, Moraci foi surpreendido pelo supervisor Américo Faria, que levou uma pasta com os dados da avaliação feita por Romário naquela manhã. O preparador não perdeu tempo.

“No avião, para dar uma descontraída, sentei ao lado do Romário. Brinquei com ele: ‘Beleza que você fez a avaliação, mas tu tá uma merda mesmo, né?’. Disse que, com aquilo em mãos, conseguiria fazer um planejamento dentro da característica dele. ‘Olha, professor, esse negócio de ficar correndo não é comigo’, ele respondeu. Eu disse que não fugiria das características dele, de uma corrida mais curta, perto da área”.

Romário confiou em Moraci. Ele participou de todos os treinamentos montados pelos preparadores físicos.

“Muitos falam que o Romário não gosta de treinar. Não é isso. Ele tem objetivo na vida. Se você trouxer um treinamento para ele com o objetivo dele, ele vai fazer aquele treinamento. Pode ter certeza. É o que aconteceu na Copa”, diz Prima, companheiro de trabalho de Moraci.

Nem só de treino vive uma seleção na Copa

Os treinos da seleção brasileira nos Estados Unidos costumavam acontecer às 12h do horário local, sob forte calor, nas mesmas condições em que os jogos aconteciam. A comissão técnica tinha grande preocupação em orientar que os atletas se hidratassem para que aguentassem jogar em alto nível naquele clima do verão, que chegava a 40°C. Toda a cobrança dos treinos e a exigência mental de uma Copa do Mundo eram aliviadas em churrascos da delegação nas folgas.

“Ao fim dos dias de jogos, o doutor Lídio Toledo falava: ‘Nosso almoço amanhã vai ser churrasco’. O doutor Mauro Pompeu, que era cardiologista, queria cortar refrigerante, cerveja, a gordura das carnes… Mas o Lídio dizia que o dia seguinte das partidas era para relaxar, para sentir que estávamos no Brasil”, conta Luiz Carlos Prima.

“A gente tomava uma cervejinha com os jogadores, brindava com eles. Isso é uma coisa sadia. Mas não tinha família, amigos, era um momento interno, íntimo nosso. Nós ali brincávamos, riámos, contávamos piadas”, completa.

Era Moises quem encomendava o churrasco. “Falei que, depois da primeira vitória, teríamos duas caixinhas de cerveja e um churrasquinho. Na segunda vitória, dobraria o número de espetinhos e de cerveja. E assim fomos até o fim, aumentando as quantidades, mas tudo dentro da regras”, revela o segurança.

O comando da churrasqueira era do lateral-esquerdo Branco. “Era muito bem feito. O gaúcho ali caprichava”, brinca Prima.

Por pouco Branco não foi o churrasqueiro

Branco poderia não ter sido o churrasqueiro oficial da delegação brasileira na Copa do Mundo de 1994. Não por algum exagero no sal ou erro no ponto da carne. O lateral, a dois dias da convocação final, esteve perto de ser cortado por ter travado a coluna.

Faltavam dez dias para o início da Copa. A comissão técnica se reuniu em uma sala e o médico Lídio Toledo falou sobre o problema. A tendência seria cortar o atleta para dar tempo de convocar outro jogador. Mas o preparador físico Moraci Sant’Anna e o fisioterapeuta Claudionor Delgado garantiram que o jogador estaria pronto para o torneio e bancaram a permanência.

“Fiz uma ponderação de que ele não poderia correr no campo, mas tínhamos equipamentos para fazer um tratamento na piscina. É um trabalho de corrida, com um colete que flutua, sem tocar os pés no fundo. Aquilo faria a manutenção do condicionamento físico”, conta Moraci.

Claudionor reiterou que o trabalho funcionaria. “Em dez dias, estará recuperado”, disse, à ocasião.

Lídio Toledo e o técnico Carlos Alberto Parreira perguntaram mais de uma vez se aquilo daria certo e se a seleção teria Branco à disposição. Receberam respostas positivas e mantiveram o lateral.

“Eu fui ao quarto do Branco e falei sobre como seria o trabalho na piscina. Ele desconfiou: ‘Pô, professor, mal estou conseguindo sair da cama’. Mas foi. Ao fim de todas as sessões, além de manter o condicionamento, ele perdeu 2,8 quilos dentro da piscina. Quando o trabalho começou, ele estava uns três quilos acima do peso”, revela Moraci.

Deu tudo certo. O período de tratamento foi suficiente até mesmo para uma ‘escapadinha’ com Claudionor ao McDonald’s. “A equipe viajou ao Canadá para um amistoso. Ficamos no hotel só eu, ele, um secretário da CBF e um representante de uma marca. Fazíamos o treinamento na piscina e voltávamos para o hotel. Em um domingo, o Branco me chamou para ir a uma igreja. ‘Vamos na missa, que lá pelo menos os repórteres não podem reclamar que estamos passeando pela cidade. Fomos e depois quisemos comer algo diferente”, conta o fisioterapeuta.

Branco esteve à disposição da comissão técnica na Copa a partir do terceiro jogo da fase de grupos, no empate por 1 a 1 contra a Suécia. Nas oitavas de final, contra o anfitrião Estados Unidos, ele viu do banco de reservas o companheiro de posição Leonardo acertar uma cotovelada em Tab Ramos e ser expulso aos 42 minutos do primeiro tempo. Quatro minutos depois, Parreira trocou o meio-campista Zinho pelo lateral-direito Cafu, a fim de suprir a ausência de um jogador do lado esquerdo. Branco não entrou.

“Estávamos indo para vestiário, depois de vencer por 1 a 0, comemorando a classificação, o Branco segurou meu braço e falou: ‘Pô, eu tô bem ou não tô bem?’. Eu falei: ‘Não seria o jogo para você entrar. Está voltando agora, está muito calor, a gente com menos um, mas fica tranquilo'”, relembra Moraci.

Nas tentativas de acertar o time que seria titular contra a Holanda, nas quartas de final, imprensa e torcedores destacavam que Branco não estava na melhor forma física, mas Moraci garantiu a Parreira que era a hora de colocar o camisa 6 para jogar.

“Ele já fez todo o trabalho de parte física que tinha de fazer. Acho que ele está bem, já fez quatro trabalhos táticos contigo. Pode entrar no jogo contra a Holanda sem problema nenhum. Ele já esteve em duas Copas, é experiente, qualquer coisa ele vai pelos atalhos”, disse o preparador ao treinador, no jantar após a vitória contra os Estados Unidos.

Branco foi titular contra os holandeses. O Brasil vencia por 2 a 0 até os 16 minutos do segundo tempo, com gols de Bebeto e Romário, mas, aos 31, viu a Holanda igualar o placar. Aos 36, em cobrança de falta histórica, o lateral-esquerdo chutou forte, a bola passou pela barreira, acertou a trave e balançou a rede. Foi o gol da vitória por 3 a 2. O gol da classificação à semifinal.

“Durante o tratamento, ele me dizia: ‘Vou voltar, entrar em campo, fazer um gol, correr na sua direção e te abraçar. Seu moral vai ficar lá em cima, seu consultório [depois da Copa] vai lotar’. Quando ele foi cobrar a falta, eu fui filmar o lance atrás do gol, com uma câmera do Lídio Toledo. Filmei o gol e vi ele correndo em direção ao banco de reservas. Depois ele falou: ‘Tá maluco, rapaz, corri direto para te abraçar e você não estava lá’. Eu esqueci completamente”, brinca Claudionor.

O lateral foi substituído já perto do fim do jogo, aos 45 minutos do segundo tempo, por Cafu.

“O Márcio Santos fazia sinal apontando para o Branco. O Jorginho passou na nossa frente e perguntamos o que estava acontecendo. Ele nos disse que o Branco estava chorando. Ninguém tem essa imagem, mas ele saiu de campo e ficou no banco de reservas chorando de emoção”, revela Moraci.

Sete anos depois, o preparador físico reencontrou o jogador em um jantar.

“Ele sentou do meu lado, próximo ao Parreira. Falei sobre a reunião e tudo que tinha acontecido. Ele ficou olhando para mim. O Parreira brincou: ‘Pode ajoelhar e agradecer. Foi isso que segurou você lá'”.

O primeiro fisioterapeuta do Brasil em uma Copa

A reunião da comissão técnica sobre o possível corte de Branco trazia uma responsabilidade a mais para Claudionor Delgado. A Copa de 1994 foi a primeira em que a delegação brasileira contou com um fisioterapeuta. Ele foi indicado por Lídio Toledo e sabia que, por conta do pioneirismo, não poderia decepcionar.

“Muitas pessoas podem não acreditar, mas eu senti uma responsabilidade muito grande de montar um serviço adequado, compatível com a equipe. Como não havia experiência nenhuma [na seleção], eu ficava dias e dias sem dormir, bolando o que tinha de levar para a Copa”, conta.

“Eu trabalhava sozinho, era o único, era muito trabalho. Eu era o último a dormir e o primeiro a acordar, porque cada atleta tem um hábito, um dorme tarde; outro, acorda cedo. Minha lembrança inicial é de muito estresse, muito trabalho e um pensamento de que eu não podia falhar”, relembra.

O profissional se sentia, como ele mesmo descreve, “um animal novo na floresta”. A certeza de que havia ganhado a confiança do grupo, depois de muita preocupação e empenho, veio de uma forma curiosa, por meio de música: o pagode “A Barata”, do grupo Só Pra Contrariar, lançado no ano anterior. Os jogadores colocavam os próprios nomes e os dos integrantes da comissão técnica no meio da música, como forma de brincar.

“Eles cantaram no ônibus: ‘Toda vez que eu chego em casa, a barata da vizinha está na minha cama. Diz aí, Claudionor, o que você vai fazer’. O Wendell, preparador de goleiros, falou para mim: ‘Agora você entrou no grupo'”, diz o fisioterapeuta.

De “animal novo”, Claudionor se tornou figurinha carimbada do grupo dos que gostavam de acordar cedo, junto com Zagallo, Dunga e Ricardo Rocha — o zagueiro se machucou no primeiro jogo, foi impedido de jogar, mas ficou na concentração até o fim, como uma espécie de agregador. A outra turma, que dormia mais tarde, contava com Ronaldo, Romário e o segurança Moises.

“Toda manhã tinha esse grupinho. Sempre era muita brincadeira. O Zagallo falava: ‘Se a gente não rir aqui dentro e brincar um com o outro, vamos ficar malucos’. Era sempre assim. O Ricardo Rocha sempre chegava com alguma novidade, contando alguma coisa, sempre descontraído”, recorda Claudionor.

No restante do dia, o fisioterapeuta se sentia um “mecânico da Fórmula 1”. “Eu colocava os carrinhos para andar”, brinca.

“Havia um quadro negro na sala principal de tratamento que eu estava usando. Fiz uma tabela com todos os atletas, todos os horários, senão não dava para atender todo mundo. Cheguei a atender 11 atletas antes da Copa. Não dá para calcular o quanto a gente trabalhava”, afirma.

O trabalho era baseado e inspirado em uma confiança que começou ainda antes do torneio.

“Eu cheguei a enviar um cartão postal para o Conselho Regional de Fisioterapia, antes da Copa, e escrevi atrás: ‘Vou voltar ao Brasil no carro do Corpo de Bombeiros com toda a equipe’. Tinha uma coisa dentro de mim”, diz.

A previsão se cumpriu. As fotos da conquista exibidas nas paredes do consultório de fisioterapia em que atende hoje em dia são as principais provas.

Engenheiro foi chamado para criar mentalidade de campeão

O cargo de fisioterapeuta não foi a única novidade na seleção brasileira em 1994. Ainda antes do início da competição, no Brasil, Parreira convidou Evandro Mota para ajudar a criar uma “mentalidade de campeão” no grupo convocado. O técnico foi aluno de Evandro, que é engenheiro de formação, em um programa de desenvolvimento e orientação mental nos anos 80.

“Quando o Parreira me convidou, me disse que o futebol é a imposição técnica, tática, física e mental de uma equipe sobre a outra. Ele queria que eu ajudasse no trabalho mental”, conta.

Foram combinadas quatro “intervenções” de Evandro com os jogadores. Ele criou um vídeo chamado Superação, que os atletas assistiram, garante, várias vezes ao longo da Copa. O vídeo mostra imagens e traz mensagens que o profissional chama de objetivacionais. As palestras de Evandro foram preparadas ao longo do primeiro semestre e o material tinha como base a trajetória de um vencedor: Ayrton Senna, então tricampeão mundial de Fórmula 1.

O primeiro contato com o grupo seria no dia 17 de maio, na Granja Comary. A ideia era uma potencialização de desempenho. Mas duas semanas antes, no dia 1º, o acidente em Ímola, na Itália, tirou a vida do piloto.

“Depois que eu consegui parar de chorar, liguei para o Parreira e disse que tinha duas notícias: a boa era que o material das palestras estavam prontos; a ruim, que tudo era baseado no Ayrton Senna. Ficamos em silêncio”, relembra.

Pouco mais de uma semana antes de morrer, no dia 20 de abril, Senna foi assistir ao amistoso entre Brasil e Paris Saint-Germain, na França, e até entrou em campo para dar o pontapé inicial da partida.

“O Parreira me chamou para a casa dele, depois da ligação, e me contou essa história. Disse que o Senna foi ao vestiário e falou que alguém teria de ser tetracampeão mundial naquele ano: ele ou a seleção. Ele me disse que nem todos jogadores tinham ouvido isso”, conta Evandro.

Foi então que surgiu a ideia de manter o material. “Eu contei o fato aos atletas e disse que, apesar de não estar mais entre nós, o Senna havia deixado todas as dicas para eles darem alegria ao povo brasileiro. A partir desse momento, deixamos de ter um propósito importante e passamos a ter também uma causa”. Na comemoração do título, jogadores e comissão técnica exibiram uma faixa em homenagem ao piloto: “Senna… Aceleramos juntos. O tetra é nosso”.

Evandro não viajou aos Estados Unidos. O trabalho acabou na Granja Comary. Ele não tem medalha de campeão mundial, mas se sente um – e os jogadores também o consideram assim, a ponto de ser convidado para a comemoração dos 30 anos da conquista.

Nutricionista não conseguiu trabalhar

A nutricionista Patrícia Bertolucci também poderia ser uma tetracampeã, mas encontrou resistência de parte da comissão técnica. Ela foi chamada para criar um plano de cardápio para a delegação brasileira na Copa do Mundo. A profissional trabalhava com Moraci Sant’Anna no São Paulo, que na época era o atual bicampeão mundial de clubes.

“Eu fiquei muito empolgada. Imagine receber um convite desse. Fiquei felicíssima, mas, chegando lá, fui minguando”, conta.

O trabalho não durou mais do que quatro dias. A profissional chegou na Granja Comary durante a preparação para o torneio. De cara, conta, ouviu que ali não poderia “usar as perfumarias” que estava acostumada no São Paulo – no clube paulista, Patrícia introduziu, por exemplo, uso de carboidrato em pó durante os treinos. Também diz ter ouvido que campo não era lugar para mulher e teve negado o acesso aos exames dos jogadores.

A questão chegou à imprensa e se tornou pública. O técnico Carlos Alberto Parreira e o preparador físico Moraci Sant’Anna tentavam contornar a situação, pedindo para Patrícia ter paciência com o que hoje ela considera uma “hierarquia arcaica”.

“Os repórteres me perguntaram o que eu achava de feijoada para os jogadores. Eu disse que achava péssimo, não digeriria bem. Disse que não era adequado”, relembra. Antes, eram os médicos, com os cozinheiros, quem decidiam o cardápio dos jogadores. Havia paio, carne-seca e toucinho estocados em Teresópolis.

Sem conseguir autonomia para trabalhar e tomar as decisões, Patrícia conta ter ficado “mal, ansiosa, nervosa e sem dormir”. “Eu perguntei: ‘Se não me deixam fazer nada, por que me chamaram?'”.

A profissional, então, foi embora da Granja Comary. “Acompanhei a Copa com certo desconforto gástrico”, revela.

A polêmica da alimentação não se resumiu ao período de preparação em Teresópolis. Já nos Estados Unidos, o segurança Moises precisou intermediar uma reclamação dos jogadores: a de ter muito macarrão.

“O cozinheiro (Martinho Souza) fazia o cardápio que os médicos passavam. Falei que ele só obedecia. Se ele estivesse fazendo isso por si próprio, eu teria avisado que os jogadores estavam reclamando. Fui um segurança que mostrou trabalho”, conta.

Foco na Copa

O grupo de jogadores evitava ao máximo se expor a assuntos que pudessem atrapalhar o foco na competição. Parte dos atletas, como Dunga, Taffarel e Branco, estavam na eliminação para a Argentina, quatro anos antes, ainda nas oitavas de final da Copa do Mundo de 1990.

Aquela geração chegou a ficar marcada como ‘Era Dunga’, um termo muito usado em forma de crítica.

“Na véspera do amistoso contra o PSG, em abril de 1994, vi os atletas sentados no chão tomando um café e ouvi a conversa deles. Eles diziam que na Copa não poderia ser permitida a entrada de empresários, por exemplo, que qualquer tipo de negociação deveria ser resolvida antes ou depois. Também falavam de não entrar jornal, nada que pudesse desagradá-los”, conta Moraci Sant’Anna.

“Eu não comentei nada com eles, mas fui para o meu quarto e vi que 50% do caminho para ganhar a Copa estava andado. Senti eles ligados e concentrados para ganhar”, completa.

Os atletas se fecharam. Até mesmo os questionamentos que vinham desde as Eliminatórias, sobretudo por parte de torcedores ao trabalho de Carlos Alberto Parreira, serviram como forma de união.

“O grupo colocou o Parreira na ‘parede’. Falaram para ele nem pensar em largar a seleção”, conta Evandro Mota, sobre o que ouviu dos momentos de tensão vividos antes do Mundial.

“Eles foram valentes, tiveram fibra. Se juntaram com o Parreira e falaram: ‘Vamos ser campeões juntos. Segura a gente, não esmoreça nunca'”, relembra Luiz Carlos Prima.

É tetra

A seleção que chegou desacredita foi ganhando cada vez moral. Na concentração, o chamado Grupo dos Dinos — os dinossauros, mais cascudos, como Branco, Dunga, Romário e Ricardo Rocha — convivia perfeitamente com os mais reservados, com a parte do grupo que se reunia em orações. “Montamos uma convivência familiar”, garante Moises, um dos Dinos.

Em campo, a campanha teve vitórias sobre Rússia e Camarões e um empate contra a Suécia na fase de grupos. O Brasil se classificou em primeiro lugar no Grupo B, com sete pontos.

Depois de passar pelo anfitrião Estados Unidos nas oitavas de final, foi a hora de encarar a Holanda nas quartas. O duelo contra os holandeses é, para muitos, o momento mais complicado daquela campanha.

A semifinal foi um reencontro diante dos suecos. Todo o caminho resultou no duelo contra a Itália no dia 17 de julho de 1994, no estádio Rose Bowl, em Pasadena, na Califórnia, a partir das 12h30 do horário local.

“O bom da final é que não precisamos esperar até de noite. O jogo foi cedo. Acordamos, tomamos um café da manhã reforçado, nos preparamos bem. Não houve tempo para ansiedade”, recorda Claudionor Delgado.

No pré-jogo, os brasileiros se preparavam no túnel de acesso ao campo para subirem de mãos dadas, uma ideia que começou com Ricardo Rocha nas Eliminatórias, a fim de mostrar a união dos jogadores, quando foram surpreendidos por um “grito de guerra” inusitado do segurança Moises.

“Eles estavam perfilados e eu gritei: ‘Atenção, seleção brasileira. Atenção, atletas. Ao povo que está no Brasil, o povo humilde, carente, sofredor, nós comemos arroz e feijão. Italiano come macarrão. Brasil, arroz com feijão; Itália, macarrão’. A seleção italiana ficou assustada. Pouca gente sabe disso”, conta.

Em campo, depois do 0 a 0 no placar, a decisão foi para os pênaltis. Baggio errou a última cobrança e o Brasil se tornou o primeiro país a ser tetracampeão mundial de futebol.

“Na hora em que você ganha um título assim, passa um filme na sua cabeça. Você vai lá na sua infância. Eu lembrei de escutar Copa do Mundo pelo rádio. Não sonhava em um dia estar lá e ainda mais sendo campeão. É indescritível”, afirma o preparador físico Moraci.

“Foi emocionante. Na volta ao Brasil, contando o tempo em Recife, Brasília e Rio de Janeiro, foram 18 horas em cima do carro do Corpo de Bombeiros. Eu guardo a sensação até hoje. É como se eu tivesse ido para a Lua e voltado”, relembra Claudionor.

“Subi no carro do Corpo de Bombeiros. Estou ali no meio”, diz Moises, que se empolga ao dizer para o mundo: “O grupo todo é tetracampeão”.

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